Pular para o conteúdo principal

João Benedito: professor de cantoria

Jocelino Tomaz de Lima me surpreendeu esses dias com um texto sobre João Benedito (1860-1943), o cantador de Esperança referenciado por Câmara Cascudo (1898-1986) em sua obra[1], e por Átila Almeida em seu Dicionário[2], colocando-o entre os “grandes repentistas e preparadores[3]”.

Trouxe-me o material informações que confirmavam as que já conhecíamos, e acrescenta outros fatos que complementam a história do grande cantador. Disse-me que recorreu a um cidadão guarabirense, pesquisador da cultura popular, que lhe repassou o verbete em cópia.

Jocelino Tomaz é memorialista e ativista cultural da cidade de Caiçara nesse Estado. Autor do livreto “100 Fatos dos 100 Anos de Jackson do Pandeiro”. Foi ele quem descobriu, no ano de 2019, uma música inédita do “Rei do Ritmo”. Coordenador da ONG Grupo Atitude, também profere palestras e possui um importante acervo pessoal.

Segundo aquela narrativa, João Viana dos Santos – João Benedito – nasceu escravo, porém foi alforriado por seu senhor que lhe ensinou a ler. Com as poucas letras que aprendeu montou uma “escola [de versos] para desemburrar menino” numa época em que “ainda não tinha curso como regra de cantoria”.

Desse curso nos dá conta a escritora Nísia Nobrega quando menciona “o célebre negro cantador, que de escravo chegou a professor primário: João Benedito[4]”.

José Clementino de Souto (1936-2011) frequentava as “aulas de cantoria” e disse ter conhecido o cantador na cidade de Cuité[5], o qual levou “esta novidade ao conhecimento de Manoel Cabeceira” (1845-1914). Manoel “rimava com espantosa facilidade. [...] era um verdadeiro gênio da poesia popular”, na opinião de Chagas Batista[6] (1882-1930).

Esse mesmo garoto, o Clementino, quando se firmou no repente, após fugir de casa levando uma viola nas costas, adotou o nome de “José Alves Sobrinho”! Ele afirmava ter recebido grandes lições daquele poeta, a exemplo desta resposta à sextilha declamada em casa de Manoel Felipe, na qual disse João Benedito:

O senhor pensa que veio

Aqui gozar as regalias

Mas se engana, você veio

Só passar uns dias

Chegou aqui e nada trouxe

E volta com as mãos vazias.

 

Uma cena que ficou gravada em sua memória foi uma cena de João Benedito cantando numa casa grande o “Romance Alonso e Marina[7]”, precedida pelo seguinte improviso:

Eu quando canto esta história

Muita gente vai chorar,

Moça se põe cabisbaixa,

A velha vai soluçar,

O velho e o moço também.

Em pranto vão se banhar.

 

Sacudo as cordas do pinho,

Eu, na toada dolente,

Solto suspiros e ais,

Meu peito fica gemente,

Recordo o tempo passado

Quando Viana era gente.

 

Vou atender, pois fizeram

A mim, um grande pedido,

O romance de Mariana,

De todos o mais querido,

Vale a pena ser cantado

Por ser muito compungido.

 

É a Força do Amor

O trabalho de bom porte,

O amante no final

Teve suplício de morte,

E a vingança de Mariana

Mostrava o seu gênio forte.

 

Diz-se que o velho cantador, muitas das vezes, interrompia os versos para explicar aos ouvintes a conhecida história dos amantes, arrancando suspiros da plateia pois, segundo o conterrâneo Egídio Gomes de Lima (1904-1965), “a emoção dos ouvintes às vezes ultrapassava as fungadas de choro represado, e vazavam lágrimas pelo sangrador dos olhos”.

Certa feita, cantando com Manoel Serrador (1906-1996) que, envaidecido, se gabava de seu traje, versejou Benedito:

Serrador é orgulhoso

Só fala em lordesa e briga

O que eu disse a Josué

Hoje é mister que lhe diga

O hábito não faz o monge

Gravata não é cantiga.

 

Benedito numa cantoria com Josué da Cruz (1904-1968), tratando das classes sociais, rimou:

Vejo o mundo dividido

Entre plebeu e nobre,

Um é preto e outro é branco,

Um rico e outro é pobre

Deus é Senhor de tudo:

E o céu a todos cobre.

 

Sobre o colega cantador, foi o próprio Josué que confessou:

“O Viana de Esperança

Eu ouço desde menino

Tem memória e peito fino,

Canta e glosa abertamente!

Faz gosto ouvir-se o repente

Do cantador nordestino!”.

 

Numa missão de Frei Damião, estando os dois cantadores em desafio, pediram-lhe para parar, foi quando João Benedito pegando a deixa improvisou:

Qual Damião e qual nada

Eu não creio em Damião

Pois homem em carne humana

Não pode dar salvação

Mesmo não é só na Igreja

Que se faz religião.

 

No verbete há ainda o testemunho de João Pichaco afirmando que, já perto do seu fim João Benedito compôs esta glosa:

Quem foi João Benedito

A glória dos cantadores!

Mas o Autor dos Autores

Vai leva-lo ao infinito;

Velho, doente e aflito

Assim não convém viver;

Sou obrigado a dizer

Tenho bastante saudade

Mesmo assim na minha idade

Faz pena um cantor morrer.

 

Bendito cantou com Romano, Nicandro e seu irmão Hugolino, Zé Patrício e Silvino Pirauá, Zé Duda e Claudino, os maiorais do verso improvisado.

 

Rau Ferreira

 



[1] Vaqueiros e Cantadores. Global Editora: 2005.

[2] Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada. Editora Universitária: 1978.

[3] ALMEIDA, Átila. SOBRINHO, José Alves. Op. Cit., 1978.

[4] Varanda: o cotidiano carioca. Rio Fundo Editora: 1995. Átila Almeida em parceria com José Alves Sobrinho.

[5] Cantadores com quem cantei. Bagagem: 2009.

[6] Cantadores e poetas populares. Conselho Estadual de Cultura: 1997.

[7]  Literatura de Cordel, 40 páginas. Reproduzida por Leandro Gomes de Barros.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A menor capela do mundo fica em Esperança/PB

A Capelinha. Foto: Maria Júlia Oliveira A Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro está erigida sob um imenso lajedo, denominado pelos indígenas de Araçá ou Araxá, que na língua tupi significa " lugar onde primeiro se avista o sol ". O local em tempos remotos foi morada dos Índios Banabuyés e o Marinheiro Barbosa construiu ali a primeira casa de que se tem notícia no município, ainda no Século XVIII. Diz a história que no final do século passado houve um grande surto de cólera causando uma verdadeira pandemia. Dona Esther (Niná) Rodrigues, esposa do Ex-prefeito Manuel Rodrigues de Oliveira (1925/29), teria feito uma promessa e preconizado o fim daquele mal. Alcançada a graça, fez construir aquele símbolo de religiosidade e devoção. Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, Bispo da Paraíba à época, reconheceu a graça e concedeu as bênçãos ao monumento que foi inaugurado pelo Padre José Borges em 1º de janeiro de 1925. A pequena capela está erigida no bairro da Bele...

A Pedra do Caboclo Bravo

Há quatro quilômetros do município de Algodão de Jandaira, na extrema da cidade de Esperança, encontra-se uma formação rochosa conhecida como “ Pedra ou Furna do Caboclo ” que guarda resquícios de uma civilização extinta. A afloração de laminas de arenito chega a medir 80 metros. E n o seu alto encontra-se uma gruta em formato retangular que tem sido objeto de pesquisas por anos a fio. Para se chegar ao lugar é preciso escalar um espigão de serra de difícil acesso, caminhar pelas escarpas da pedra quase a prumo até o limiar da entrada. A gruta mede aproximadamente 12 metros de largura por quatro de altura e abaixo do seu nível há um segundo pavimento onde se vê um vasto salão forrado por um areal de pequenos grãos claros. A história narra que alguns índios foram acuados por capitães do mato para o local onde haveriam sucumbido de fome e sede. A s várias camadas de areia fina separada por capas mais grossas cobriam ossadas humanas, revelando que ali fora um antigo cemitério dos pr...

Genealogia da família DUARTE, por Graça Meira

  Os nomes dos meus tios avôs maternos, irmãos do meu avô, Manuel Vital Duarte, pai de minha mãe, Maria Duarte Meira. Minha irmã, Magna Celi, morava com os nossos avós maternos em Campina Grande, Manuel Vital Duarte e Porfiria Jesuíno de Lima. O nosso avô, Manuel Vital Duarte dizia pra Magna Celi que tinha 12 irmãos e que desses, apenas três foram mulheres, sendo que duas morreram ainda jovens. Eu e minha irmã, Magna discorríamos sempre sobre os nomes dos nossos tios avôs, que vou colocar aqui como sendo a expressão da verdade, alguns dos quais cheguei eu a conhecer, e outras pessoas de Esperança também. Manuel Vital e Porfiria Jesuíno de Lima moravam em Campina Grande. Eu os conheci demais. Dei muito cafuné na careca do meu avô, e choramos sua morte em 05 de novembro de 1961, aos 72 anos. Vovó Porfiria faleceu em 24 de novembro de 1979, com 93 anos. Era 3 anos mais velha que o meu avô. Nomes dos doze irmãos do meu avô materno, Manuel Vital Duarte, meus tios avôs, e algum...

Dom Manuel Palmeira da Rocha

Dom Palmeira. Foto: Esperança de Ouro Dom Manuel Palmeira da Rocha foi o padre que mais tempo permaneceu em nossa paróquia (29 anos). Um homem dinâmico e inquieto, preocupado com as questões sociais. Como grande empreendedor que era, sua administração não se resumiu as questões meramente paroquianas, excedendo em muito as suas tarefas espirituais para atender os mais pobres de nossa terra. Dono de uma personalidade forte e marcante, comenta-se que era uma pessoa bastante fechada. Nesta foto ao lado, uma rara oportunidade de vê-lo sorrindo. “Fiz ciente a paróquia que vim a serviço da obediência” (Padre Palmeira, Livro Tombo I, p. 130), enfatizou ele em seu discurso de posse. Nascido aos 02 de março de 1919, filho de Luiz José da Rocha e Ana Palmeira da Rocha, o padre Manuel Palmeira da Rocha assumiu a Paróquia em 25 de fevereiro de 1951, em substituição ao Monsenhor João Honório de Melo, e permaneceu até julho de 1980. A sua administração paroquial foi marcada por uma intensa at...

Barbeiros Esperancenses

Zé Costa fazendo a barba de Chico Braga Narrando as suas memórias, o ilustre João de Patrício relata a extinção dos barbeiros, cujo texto está publicado no seu blog “Revivendo Esperança”. Neste, relembra Zé Costa, que também atuou no município como Fiscal de Menores, função que muito se assemelha àquela que é realizada pelos Conselheiros Tutelares. Assim, gostaria de dar a minha contribuição, lembrando os antigos barbeiros que atuaram em Esperança: Zé Calor, no início da rua do Sertão; Luiz Barbeiro, casado com dona Terezinha; Pedro Barbeiro, ao lar do Bar de Basto Finfa; Antônio Barbeiro, que durante muito tempo trabalhou vizinho à Didi de Lita, e depois se mudou para o lado da Igreja; Raimundo da Madeireira, que por um tempo também cortou cabelo, e Antônio Barbeiro, pai de Mané Galego. Cícero Clementino Dentre estes, escolhi o Sr. Cícero Clementino dos Santos para homenagear. Seu Cícero ingressou na profissão aos 17 anos, e trabalhou por mais de 55 anos como barbeiro...