Um testamento é a manifestação da vontade
daquele que, dispondo de seu patrimônio, registra em vida o destino do seu
legado post mortem. Por ele também se atribui direitos e deveres a que o
testador fiel tem o compromisso de obedecer. É um documento que goza da
proteção legal.
O Padre Zé Coutinho já não gozava de boa
saúde. O inchaço nas pernas o impedia de deambular livremente pela cidade, eis
porque fazia uso de uma cadeira de rodas quando percorria as ruas enladeiradas
de João Pessoa angariando fundo para as suas obras sociais. Sofrera também um
pequeno derrame cerebral “que durou três dias”.
Os médicos lhe aconselharam repouso absoluto;
não deveria, pois, buscar socorro para os seus pobres. Porém o vigário não se
continha, e sentindo-se melhor, saía de encontro ao povo nas portas de bares e
dos cinemas recolhendo algumas moedas.
O seu estado de saúde inspirava-lhe cuidados.
Ele tinha consciência das suas limitações, tanto que solicitou ao amigo e
conterrâneo Chico Souto que cuidasse dos trâmites de seu testamento “de graça”.
Pedido esse que o tabelião não poderia negar.
“[...] peço-lhe mandar fazer meu testamento de graça
porque pretendo agora, pois a minha saúde não está boa, fechado se pode ser
datilografado ou aberto, se isto não for possível.
Pouca coisa possuo, mas que desejo tenham o
seguinte destino, depois de minha morte”.
O jornalista Bil Ramos, poucos dias antes da
morte do velho padre, escreveu um importante relato para a “Realidade”, revista
que se publicava em São Paulo. Na reportagem, destaca que ele permanecia “duas,
três horas nas filas dos cinemas, recolhendo esmolas”, descrevendo assim o seu
itinerário:
“[...] Ou ia de bar em bar, de restaurante em
restaurante. Aos domingos, seu ponto era a feira livre do mercado central.
[...] surpreendi-me ao vê-lo sentado numa cadeira, na fila do cinema Plaza. Não
podia mais ficar muito tempo de pé, cansava-se facilmente. Depois, passou a
pedir esmolas montado num riquixá, que dois meninos puxavam, à maneira dos
chineses. Ultimamente, havia trocado o riquixá por uma cadeira de rodas e
aparecido com duas novidades: um chapéu de pala comprida, com o dos jogadores
americanos de baseboll, e uma varinha leve igual às que usam os
professores para mostrar mapas e gráficos nas salas de aula. Com ela, padre Zé
simplificou sua tarefa de pedinte: bastava bater no ombro da pessoa distraída
e, em seguida, estender a mão. [...]. Diariamente, dois meninos saíam às ruas,
levando a cadeira de rodas. E, em toda parte, ela era recebida como um símbolo:
a mão estendida do padre Zé”.
“Lembrando-se
de mim, não se esqueçam dos meus pobres!”, disse certa vez o vigário.
Na carta-testamento que escrevera,
confessava-se pobre como Jó, e já tendo mais de 70 anos, anexava três laudos médicos
de sanidade mental.
Assim dispôs o velho sacerdote: os objetos
pessoais pertenceriam ao Instituto Padre Zé, salvo se sua sobrinha e filha de
criação, Rivaldina Coutinho Garcia, dissesse o contrário.
A parte de terras no Engenho Freixeira, no
Município de Areia, deixava por usufruto para o seu cunhado João de Carvalho
Dias, pois residia ali há muitos anos com sua irmã Antônia da Silva Coutinho
(Nina), tendo “sido muito bom esposo” e “enquanto que ele quiser lá residir”. Após
a morte do cunhado, estas pertenceriam a Nina.
E orienta ainda o destino do seu instituto:
“[...] entrego os destinos do Instituto São José, a uma
comissão de alto nível, Exmo. Sr. Arcebispo Metropolitano, tenha ele no momento
o nome que tiver, atualmente, na pessoa de D. José Maria Pires, esta alma
eleita que Deus Nosso Senhor fez chegar a Paraíba, no Exmo. Sr. Governador
Ministro Ernani Sátyro, cuja administração honrada e progressista proclamo
neste momento e ao Exmo. Sr. Prefeito desta Capital, nestas horas nas mãos
limpas de nosso Dr. Dorgival Terceiro Neto, esta violeta que a Paraíba tem, um
extraordinário administrador, solicitando-lhe amparar os antigos servidores que
tão bem comigo trabalharam com toda dedicação”.
No aludido documento, também fez o sacerdote
uma breve reflexão de sua vida:
“[...] Não estou arrependido de ter vendido a propriedade
Mary Preto, hoje município de Pocinhos e ter distribuído o dinheiro com os
pobres em 1927; não estou arrependido de ter rejeitado para mim, a propriedade de
Mandacaru Iaiá Paiva, que me era dada de mãos beijada, e sim determinado que
ela a doasse ao Instituto São José, também não estou arrependido de ter
dedicado de corpo e alma à caridade, porque apesar de ter forma de Santo, era
um grande pecador;”.
E recomenda a velha amiga Emília Galvão
“fazer novo testamento de uma casa que fez para mim na rua Santo Elias, 163
para a Senhorita Maria do Carmo que mora com ela a muitos anos”.
Nomeou testamenteiros o seu sobrinho, o
Desembargador Júlio Aurélio Moreira Coutinho, filho de Pedro Coutinho; o Dr.
Antônio Waldir Bezerra Cavalcante, que deveria “acompanhar a parte legal no
cumprimento deste testamento” e o Dr. Geraldo Coutinho Garcia, filho de sua
irmã Luzia, qa quem na intimidade chamava-a de Nenem.
O Padre Zé passou mal num dia
de finados, quando recolhia às portas do Cemitério da Boa Sentença, esmolas dos
que por ali passavam. Esse dia fazia um sol escaldante. Socorrido e internado
no Prontocor, veio a falecer no dia 5 de novembro de 1973.
Rau Ferreira
Referência:
- DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Jornal. Edição de 07 de
novembro. Recife/PE: 1973.
- ESPERANÇA, Revista. Centenário de Padre Zé, texto de Anaelson L. de
Souza. Edição de 20/10 à 20/12. Esperança/PB: 1997.
- IHGP, Revista (do). Instituto Histórico e
Geográfico da Paraíba. Ano LXXXIX, N. 30. João Pessoa/PB: 1998.
- RAMOS, Severino. Retrato de um padre mendigo.
Revista “Realidade”. Edição de novembro. São Paulo/SP: 1973.
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