Pular para o conteúdo principal

A Lenda Cariry

 


No tempo em que toda essa região era mata nativa e que havia pequenas concessões de terras doadas pela coroa portuguesa denominada de Sesmarias; quando os índios Carirys – povo nômade que habitou a Parahyba oitocentista – vagava “demorando-se em um sítio, ora em outro”, como disse Herckman (1886), aconteceu um fato que ficou registrado na memória popular, e que com o tempo ganhou ares de “lenda”, que passo a narrar.

Viviam os silvícolas da caça e pesca, não praticavam agricultura e diziam ter vindo “de um grande lago”. Eles ocupavam os lugares mais afastados da Capitania, conhecidos também pelo epiteto de “Gentios Bravos”.

Eram primatas ferozes. Andavam nus e só se vestiam para os dias de festa, prendendo o homem o membro viril com um “atilho”. Usavam armas e costumavam guerrear, sendo por isso chamado de “Tapuias”, ou seja, “inimigos” na sua língua-materna.

As mulheres eram indistintamente mais baixas que os homens, tinham cabelos negros e compridos e andam igualmente nuas. Eram submissas e serviçais aos maridos ao que for razoável. Contudo, não suportam o adultério. Colocavam pauzinhos na face para indicarem serem casadas.

Antropófagos, comiam os próprios mortos. Diziam que “o finado não pode ser melhor guardado ou enterrado do que em seus corpos” (Herckman: 1886).

Por tudo isso eram temidos!

No tempo em que tudo era fazenda de criar gados na possessão de João Gonçalves Seixas que deu por dote à Rosa Maria viúva de Balthasar Gomes, estavam os Banabuyés acampados no entorno de uma furna que por se constituir sua habitação, era chamada de “Furna do Caboclo Bravo”.

Diz-se que um homem saiu e veio a se perder na mata e foi capturado pelos índios. Enquanto ansiava o seu destino, pôs os olhos numa indiazinha de tez morena e cabelos negros como a noite, que enamorada respondeu aos gracejos do varão comunicando-se por gestos, pois desconhecia a língua vernácula.

Pouco tempo se passou até o homem ganhar a confiança da moça e e ser libertado pelo chefe de unhas compridas e cabelo enfeitado com penas de arara, passando a circular entre no pequeno aldeamento sem, no entanto, se aventurar na selva, não apenas pelos perigos que essa oferecia, como também pelos “vigias” que lhe rodeavam e por ser incerto o caminho de casa.

O tempo se passou, a índia engravidou e deu à luz um indiozinho com traços portugueses, que nos primeiros meses acompanhava a mãe em um cesto para todo o canto, alçado às costas da mulher.

O homem, a seu turno, acostumara-se aos hábitos indígenas, porém guardava sempre na lembrança saudades do seu lar, onde deixara os pais, sempre a imaginar por ocasião da lida quão esperançosos estavam de seu regresso.

Passou o lusitano a planejar fuga, tendo a índia por companheira e, numa dessas luas, em que se comemoram os nativos a sega, foragiu da aldeia levando também o rebento a tiracolo. Mal percorrera a distância de um tiro de flecha, logo deram por conta de seu desaparecimento e iniciaram a caçada.

Foram mato a dentro os fugitivos cobrindo as pegadas como todo bom indígena o sabe fazer com folhagens secas, mas na pressa não encobriram de certo os rastros, e sendo perseguidos de mui perto alcance, desesperada a índia atira o infante sob uma pedra, com a intenção de se desfazer daquele fardo que lhe parecia pesado e ficar unicamente com o seu amado.

Não olvidara a jovem que destino cruel lhe sobreviria naquele seu infortúnio, pois alcançada uma clareira percebeu o homem estar perto de uma fazenda, ocasião em que foi cercado por cachorros que latiam desesperados como que a avisar a seus donos da invasão noturna.

A índia temendo ser devorada por cães e ouvindo os passos apressados de sua gente voltou-se para o matagal intenso, sozinha e abandonada vira ao longe um último sorrido daquele que foi seu grande amor quando os fazendeiros lhe acolheram com uma salva de tiros ao alto que afugentou os silvícolas.

Fora esse o seu último lampejo de felicidade.

Diz-se que o homem se hospedou naquela fazenda por algum tempo, até encontrar o caminho de volta para a sua morada, onde depois se casou com uma jovem provinciana, de hábitos e costumes civilizados, apagando-se de vez a memória de que um dia vivera a maior das aventuras.

A índia não esqueceu...

E preferindo a solidão por companheira terminou seus dias definhando na desventura de que cada pirilampo fosse os olhos do amado piscando; e o assobio da cotovia, a sua voz lhe chamando para o prazer d’outrora donde lhe via toda a satisfação de viver. 

Com o passar do tempo boa parte dos Cariris haviam sido banidos deixando as férteis terras para os colonizadores, enquanto outros passaram a viver em harmoniosa miscigenação. Alguns foram catequizados pelos portugueses até que não restara mais nada de seus costumes.

Essa lenda foi contada por dona Rosa Porto, conhecida por “Doda”, uma senhora que lecionou cinco anos no “Sítio Cabeça de Boi”, fazenda sediada no extremo Norte de Esperança-PB, onde habitou uma tribo Banabuyé assim dita por Elias Barbosa (1982).

A estória foi por mim adaptada ao melhor estilo romanesco com ênfase nos fatos históricos que se podem conferir numa breve leitura das referências ao final deste texto.

Não se tem ao certo se de fato aconteceu, nem mesmo se dera no “Cabeço”. Essa é uma história tão antiga e repetida por gerações que qualquer evidência se perdeu. Também é provável que n’alguma região esses relatos sejam reproduzidos com algumas mudanças de cenário e de pessoas.

Por ora, a lenda cabe bem a seus propósitos, de trazer à lembrança uma estória que há muito é contada e recontada por sitiantes da antiga propriedade Cabeço que pertencera a meu avô materno Antônio Ferreira.

 

Rau Ferreira

 

Referências:

- ANUÁRIO, Campina Grande. Campina Grande e os Índios Cariris. Editor Evaldo Cruz. Grafset Ltda. Campina Grande/PB: 1982.

- FERREIRA, Glória. A Lenda Cariry. Contação de história memorada pela Sra. Doda no Sítio Cabeço. Esperança/PB: s/d.

- FERREIRA, Rau. Breve descrição dos Índios Carirys e seus costumes. Edições Banabuyé. Esperança/PB: 2012.

- R.IAGP, Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco. Descrição geral da Capitania da Parahyba. Tomo V, nº 31. Typografia Industrial. Recife/PE: 1886.

Comentários

  1. Minha mãe conta esse caso, dizendo do rapaz que teria colocado em folheto... diz também de suposta crueldade da nativa, matando a criança como vingança pelo abandono do branco, diz de como se dera o casamento, diz do alimento na tribo servido.

    ResponderExcluir
  2. Comentário de Antônio Ferreira Filho:

    "Essa história passou-se na Fazenda Cabeço que pertenceu aos meu pais - Antônio Ferreira de Melo e Maria Alves de Melo. A Professora citada na narrativa - Rosa Porto (Doda) foi contratada por meu pai - Antônio Ferreira -, para alfabetizar meus irmãos mais velhos e os filhos dos moradores. Doda, como carinhosamente era chamada por nós, foi quem criou e cuidou de Marizė de Melo e Torres - irmã já falecida e que nutria um carinho todo especial por Doda. Belíssima e emocionante lenda que se entrelaça com a história! Muitíssimo obrigado Rau Ferreira por resgatar essa narrativa!" (Antônio Ferreira Filho, em 20/09/2021).

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário! A sua participação é muito importante para a construção de nossa história.

Postagens mais visitadas deste blog

A Pedra do Caboclo Bravo

Há quatro quilômetros do município de Algodão de Jandaira, na extrema da cidade de Esperança, encontra-se uma formação rochosa conhecida como “ Pedra ou Furna do Caboclo ” que guarda resquícios de uma civilização extinta. A afloração de laminas de arenito chega a medir 80 metros. E n o seu alto encontra-se uma gruta em formato retangular que tem sido objeto de pesquisas por anos a fio. Para se chegar ao lugar é preciso escalar um espigão de serra de difícil acesso, caminhar pelas escarpas da pedra quase a prumo até o limiar da entrada. A gruta mede aproximadamente 12 metros de largura por quatro de altura e abaixo do seu nível há um segundo pavimento onde se vê um vasto salão forrado por um areal de pequenos grãos claros. A história narra que alguns índios foram acuados por capitães do mato para o local onde haveriam sucumbido de fome e sede. A s várias camadas de areia fina separada por capas mais grossas cobriam ossadas humanas, revelando que ali fora um antigo cemitério dos pr

A menor capela do mundo fica em Esperança/PB

A Capelinha. Foto: Maria Júlia Oliveira A Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro está erigida sob um imenso lajedo, denominado pelos indígenas de Araçá ou Araxá, que na língua tupi significa " lugar onde primeiro se avista o sol ". O local em tempos remotos foi morada dos Índios Banabuyés e o Marinheiro Barbosa construiu ali a primeira casa de que se tem notícia no município, ainda no Século XVIII. Diz a história que no final do século passado houve um grande surto de cólera causando uma verdadeira pandemia. Dona Esther (Niná) Rodrigues, esposa do Ex-prefeito Manuel Rodrigues de Oliveira (1925/29), teria feito uma promessa e preconizado o fim daquele mal. Alcançada a graça, fez construir aquele símbolo de religiosidade e devoção. Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques, Bispo da Paraíba à época, reconheceu a graça e concedeu as bênçãos ao monumento que foi inaugurado pelo Padre José Borges em 1º de janeiro de 1925. A pequena capela está erigida no bairro da Bele

Barragem de Vaca Brava

Açude Vaca Brava, Canalização do Guari (Voz da Borborema: 1939) Tratamos deste assunto no tópico sobre a Cagepa, mais especificamente, sobre o problema d’água em Esperança, seus mananciais, os tanques do Governo e do Araçá, e sua importância. Pois bem, quanto ao abastecimento em nosso Município, é preciso igualmente mencionar a barragem de “Vaca Brava”, em Areia, de cujo líquido precioso somos tão dependentes. O regime de seca, em certos períodos do ano, justifica a construção de açudagem, para garantir o volume necessário de água potável. Nesse aspecto, a região do Brejo é favorecida não apenas pela hidrografia, mas também pela topografia que, no município de Areia, apresenta relevos que propiciam a acumulação das chuvas. O riacho “Vaca Brava”, embora torrencial, quase desaparece no verão. Para resolver o problema, o Governador Argemiro de Figueiredo (1935/1940) adquiriu, nos anos 30, dois terrenos de cinco engenhos, e mais alguns de pequenas propriedades, na bacia do açude,

Afrescos da Igreja Matriz

J. Santos (http://joseraimundosantos.blogspot.com.br/) A Igreja Matriz de Esperança passou por diversas reformas. Há muito a aparência da antiga capela se apagou no tempo, restando apenas na memória de alguns poucos, e em fotos antigas do município, o templo de duas torres. Não raro encontramos textos que se referiam a essa construção como sendo “a melhor da freguesia” (Notas: Irineo Joffily, 1892), constituindo “um moderno e vasto templo” (A Parahyba, 1909), e considerada uma “bem construída igreja de N. S. do Bom Conselho” (Diccionario Chorográfico: Coriolano de Medeiros, 1950). Através do amigo Emmanuel Souza, do blog Retalhos Históricos de Campina Grande, ficamos sabendo que o pároco à época encomendara ao artista J. Santos, radicado em Campina, a pintura de alguns afrescos. Sobre essa gravura já havia me falado seu Pedro Sacristão, dizendo que, quando de uma das reformas da igreja, executada por Padre Alexandre Moreira, após remover o forro, e remover os resíduos, desco

Ruas tradicionais de Esperança-PB

Silvino Olavo escreveu que Esperança tinha um “ beiral de casas brancas e baixinhas ” (Retorno: Cysne, 1924). Naquela época, a cidade se resumia a poucas ruas em torno do “ largo da matriz ”. Algumas delas, por tradição, ainda conservam seus nomes populares que o tempo não consegue apagar , saiba quais. A sabedoria popular batizou algumas ruas da nossa cidade e muitos dos nomes tem uma razão de ser. A título de curiosidade citemos: Rua do Sertão : rua Dr. Solon de Lucena, era o caminho para o Sertão. Rua Nova: rua Presidente João Pessoa, porque era mais nova que a Solon de Lucena. Rua do Boi: rua Senador Epitácio Pessoa, por ela passavam as boiadas para o brejo. Rua de Areia: rua Antenor Navarro, era caminho para a cidade de Areia. Rua Chã da Bala : Avenida Manuel Rodrigues de Oliveira, ali se registrou um grande tiroteio. Rua de Baixo : rua Silvino Olavo da Costa, por ter casas baixas, onde a residência de nº 60 ainda resiste ao tempo. Rua da Lagoa : rua Joaquim Santigao, devido ao