Em se tratando
de história de cunho macabro a exemplo de cemitério, velórios, caixões e
mortuárias, há inúmeros episódios a serem narrados por pessoas que viveram
presentemente essas façanhas.
Vivi numa época
em que na cidade ou na zona rural muitos morriam e a família não podia comprar
um ataúde.
Quando
procedente da zona rural, o esquife se apresentava com o falecido distendido
numa surrada rede pendurada num caibro roliço apoiado em ombros de carregadores
que se revezavam ao longo do trajeto fúnebre.
Mas, para aquele
falecido na cidade, havia uma solução: No cemitério mantinha-se guardado um
pequeno estoque de três ou quatro caixões antigos, rústicos, de madeira pesada,
pintados na cor preta já esmaecida, que eram emprestados para as famílias
conduzirem os seus mortos até o cemitério.
Lá chegando, à
beira da cova, tiravam do caixão o cadáver o qual vinha envolto num lençol
usado e desciam o corpo à sepultura. Fatídico cenário!
Em meio à
sequência desta descrição, relato que na minha infância de menino sonhador e
sem dinheiro, depois de desistir como ajudante de sapateiro no final da década
de 50 e início dos anos 60, vivi a experiência de trabalhar também como
aprendiz de fabricante de caixões de defuntos.
A oficina, que
pertencia ao já idoso, o senhor Cassemiro Jesuíno Lima, de família tradicional
da cidade, era a única casa mortuária de Esperança e se localizava exatamente
na área onde hoje é rua que dá acesso à feira, ao mercado público e à Rua José
Andrade.
Ali, também se
fabricavam molduras para espelhos, quadros e postais.
Eram operários
do ofício os seus netos e irmãos Zé de Cicinato e Danda, mas havia um outro
senhor do qual não me recordo o nome; completávamos a equipe eu e outro
ajudante aprendiz.
O seu Cassemiro
ficava a jogar dama e gamão (jogava como ninguém) na calçada do seu
estabelecimento com os seus amigos vizinhos e contemporâneos Teotônio Costa e
Theotônio Rocha e outros como Genésio Nogueira.
Às vezes
apareciam, também, Geová Lima que era seu sobrinho, Diogo Batista, Vicente
Simão, e o irmão de Santino Damião, da sorveteria (o Liga, da gelada), para
entrarem na disputa de quem seria o melhor por eliminação, na jogatina. Quase
todos eram exímios competidores e alguns quase imbatíveis no jogo de "DAMAS"!
O seu Cassemiro
adentrava, vez por outra, na oficina com o intuito de fiscalizar e orientar os
operários do ofício no acabamento e cobertura dos caixões de anjos e ataúdes,
que eram revestidos com tecidos de murinho azul, rosa, roxo ou preto, ou mesmo
em seda, naquela época, cores mais comuns para revestimentos dos caixões.
Havia uma
demanda maior para os caixãozinhos de anjos, setor onde eu ajudava e que eram
normalmente azuis e da cor rosa, para
crianças, porque quase que diariamente, assistíamos da calçada da oficina à
passagem de um pai de corpo esquálido e desconsolado, procedente da zona rural,
carregando com uma rodilha de pano sobre a sua cabeça o pequeno invólucro do
seu anjinho sem vida rumo ao cemitério, sozinho ou acompanhado de mais uma, duas
ou três pessoas.
Era o auge da mortandade
infantil da época; eram crianças que faleciam sem assistência na hora do parto,
ou de doenças diversas tipo diarreia, sarampo, difteria e, na maioria das
vezes, por desnutrição (fome).
Refiro-me, reitero,
aos que procediam da zona rural e que víamos passar rumo ao cemitério em
caixãozinhos azuis ou cor de rosa; eram os chamados de anjos; afora os que eram
enterrados à beira das estradas, próximo a morada dos pais, na zona rural, onde
eram fincadas pequenas cruzes, indicando que ali fora enterrado mais um
serzinho chamado de pagão, por não ter sido batizado na igreja católica como
tantos outros, devido a distância, a indiferença espúria e a falta do aparato
médico-social dos poderes públicos inexistentes naqueles idos.
Assim, também
foram os anos anteriores e assim, atravessamos toda a década dos anos 60, onde
víamos diariamente, das segundas às sextas-feiras por todas as ruas da cidade,
pobres pedintes de porta em porta a mendigar esmolas, ou sentados à porta da
igreja em dias de domingo após o término da missa estendendo a mão implorando
ajuda…!
"Uma
esmolinha pelo amor de Deus!"
Triste realidade
da época!
Esperança, abril
de 1991.
Pedro Dias
às 2:50 hrs da
manhã de 21 setembro de 2020
Excelente redação do meu amigo Pedro Dias. Bom escritor e, também, bom poeta. faz-me lembrar os bons tempos de nossa juventude, em que escrevíamos poemas românticos. Essa redação nos traz um passado vivido por nós, nos idos anos 60. testemunhamos esses fatos, com naturalidade.
ResponderExcluirAcredito que a chegada das Irmãs Holandesas deve ter aliviado esse clima de penúria. Mas, mesmo nos anos 80, eu morando na Rua do Cemitério, por assim dizer, vi muitos enterros de anjos... Graças as boas decisões político-administrativas mais recentes, quando um anjinho volta aos céus, nos espantamos de um modo geral. Eu, espírita por filosofia, agradeço a Deus, por livra-los desse mundo cão, pela inspiração dos homens na prática do bem fazer público e para escrever relatos tão bons. Obrigado, Pedro. Obrigado, Rau!
ResponderExcluirEntão. Mto bom o relato de Pedro Dias, referindo-se à oficina fazedora de caixões, pelos anos 50/60, pertencente ao meu tio avô, Cassemiro Jesuíno de Lima, ao mesmo tempo que tece leve crítica aos governos da época (que, com raras exceções, continuam os mesmos).
ResponderExcluirMas, chamou-me a atenção o ofício de marcenaria do meu tio avô, pq lembrei que os outros tios avôs e o meu próprio avô tb eram useiros e vezeiros do mesmo oficio, mesmo que alguns grandes comerciantes tivessem sido.
José Jesuíno (Lita, Tilita) fazia oratórios de madeira mto lindos, que se perpetuaram nas casas dos familiares.
E, por coincidência, minha avó materna, Porfiria Jesuíno de Lima, irmã de Cassemiro e Lita, casou com Manuel Vital Duarte, o qual TB gostava da marcenaria.
Menina-moça, em casa dos meus pais, dormia eu numa cama solteiro feita pelo meu avô, Manuel Vital Duarte, e, para nosso orgulho e admiração, o oratório de minha mãe (hoje em meu apartamento)TB fora feito por ele.
Não por coincidência, mas por tradição sagrada da história do Novo Testamento, a marcenaria era o ofício de São José, o pai de Jesus. SALVE!
Obrigado pelo comentário, Graça Meira!
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